Em Dogville, de Lars Von Trier, pudemos observar de forma seca uma disposição incomum de cenários e personagens. Isso se deve ao fato de a fita ser filha do Dogma 95 – movimento cinematográfico que prima para um cinema mais realista e menos comercial. Entretanto, consigo pensar que Dogville pode ser também uma homenagem ao teatro, mas tenho consciência que o propósito de Lars não era esse. Ano passado, contudo, John Patrick Shanley despejou em seu Dúvida um viés único e exclusivamente teatral não só na forma de atuação dos artistas, mas sim no tipo de apresentação do roteiro. E esse desejo de manifestar aspectos teatrais no cinema já foi visto, antes destes dois filmes, numa obra-prima atemporal que foi brutalmente censuranda por ser tão ousada e incomum. Falo de A Streetcar Named Desire ou, numa tradução que não funciona tanto, Uma Rua Chamada Pecado.
O filme é livremente baseado na peça de Tennessee Williams e adaptado desta por Oscar Saul. Nos apresenta a história de Stella (Kim Hunter) e Stanley (Marlon Brando), um casal que vive uma relação constante de amor e ódio mas que, no fim, aquele sentimento sempre reina. O que já era bastante obscuro transforma-se em algo sarcástico e misterioso com a chegada de Blanche DuBois (Vivien Leigh), irmã de Stella, a qual vai passar uns tempos junto ao casal. A atmosfera do filme torna-se pesada e bastante densa quando Blanche curiosamente – e de forma esquisita – começa a prestar atenção em Stanley e, pior, consuma-se uma relação nebulosa e cínica entre os dois. Óbvio que Stella tenta ser a favor do marido mas, ao mesmo tempo, deve acreditar nas histórias quase que utópicas de sua irmã. Cada dia parece ser pior que o outro na vida deste trio, e tudo piora quando Stanley descobre quem é, de fato, Blanche e uma verdade aparente vem à tona.
Na parte secundária ainda temos Mitch (Karl Malden) que é amigo de Stanley e se vê apaixonado por Blanche. O interessante, aqui, é a entonação dada ao passageiro romance entre os dois: claramente percebemos a entrega de Mitch e o desejo de esconder o passado por parte dela. Esconder não é a palavra certa; ela procura contornar tudo o que já aconteceu e seguir em frente, mas ainda assim ficamos confusos se é realmente esta a proposta de Blanche. Pode-se observar que, discretamente e sem ser intencional, a fita mostra a instalação do caos num local onde existia paz, mesmo que aparente. Mas este caos é o que torna o material impecável, já que é algo psicológico e não social ou que pende à violência bélica ou temas do tipo. E tudo é ratificado com cenas absurdamente ousadas e que tendem completamente às técnicas teatrais principalmente no que tange as atuações. As passagens que antecedem o final são fortes e incomodam o espectador até chegar num triunfal e inesquecível desfecho.
Como já frisei várias vezes no texto, as pitadas teatrais estão inseridas de forma louvável no filme. Elia Kazan, então, dirige tudo com uma cautela ímpar e conduz esta fita complicada como já havia feito anteriormente em A Luz é Para Todos. Sendo sincero, digo que não consigo expressar o que é a direção de Kazan. Consegue ser visceral em cada plano e, não contente, suga até o último suspiro de seus atores. E, antes tarde do que nunca, cá chegamos: o trabalho dos atores e atrizes. Nunca escondi que acho o trabalho de elenco de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? o melhor da história. Mas também nunca fui louco de não concordar que o elenco de Uma Rua Chamada Pecado é quase tão genial quanto aquele. Kim Hunter é brilhante por conseguir mostrar os dois lados de uma mulher apaixonada pelo marido mas que, ao mesmo tempo, nutre um amor incondicional pela irmã. Karl Malden também mostra uma bela atuação que, no fundo, é bastante difícil. Mas parem tudo e chamem a NASA! As duas estrelas são, com certeza, Vivien Leigh e Marlon Brando. Não tem como, são duas interpretações impressionantes, magníficas. Ele, além do seu indiscutível porte de galã, consegue ministrar tons hilários com intensamente dramáticos e, claro, violentos. Ela, uma das minhas atrizes preferidas, simplesmente choca o mundo com a melhor atuação feminina de todos os tempos, pra mim. A sua expressividade é incomum e percebam que Vivien tem um dom único de falar pelo olhar, por gestos. Inclusive, sugiro que prestem atenção nos momentos em que Vivien e Marlon atuam juntos. Saem metáforas de seus olhares e frases completas de suas posturas e gestos. Não é coisa digna de ser chamada de obra-prima? Chorem, riam, se desesperem, odeiem e misturem os sentimentos que quiserem em Uma Rua Chamada Pecado; ela está ali... vocês sabem o endereço.
Nota: 10,0
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